Freira brasileira é afastada e gera debandada em mosteiro: 'Nada era real'

Aline Pereira Ghammachi, a freira brasileira de 41 anos expulsa da liderança do Mosteiro Cisterciense dos Santos Gervásio e Protásio, na Itália, afirma que as acusações contra ela são infundadas. Sua saída como abadessa (chefe do mosteiro) gerou a debandada de outras 12 freiras, que deixaram o local em solidariedade a ela.
Para Aline, a decisão é consequência das transformações que promoveu no mosteiro e do machismo aliado ao abuso de poder de quem não aceita ver uma mulher na liderança. Agora espera a resposta da contestação que encaminhou ao Supremo Tribunal da Apostólica, a mais alta autoridade judicial da Igreja Católica.
Em um jardim ensolarado a poucos quilômetros do mosteiro que um dia foi sua casa, Aline recebeu a reportagem do UOL em Vittorio Veneto, uma cidade que fica a cerca de 580 km de Roma. Pequena, com os olhos azuis e um sorriso no rosto de quem não desanima, ela elencou os principais pontos que, em sua visão, deslegitimam a tentativa de afastá-la.
Foram acusações anônimas de maus-tratos, abuso de autoridade e desvio de recursos que, segundo ela, nunca foram comprovadas e acabaram arquivadas como calúnias. De acordo com Aline, foram realizadas ao menos oito inspeções no mosteiro desde 2023, mas nenhum relatório foi compartilhado com ela - que disse não ter tido direito a se defender formalmente também.
"O abade-presidente da nossa congregação, padre Stefano Zanolini, me ligou para dizer que o Vaticano havia recebido uma carta anônima. Acusações absurdas: maus-tratos às irmãs, abuso de autoridade, desvio de recursos. Nada daquilo era real. Foi como um soco no estômago", relatou.
Eleição como abadessa mais jovem da Itália
Nascida em Macapá, Aline se formou em istração de empresas em 2004 e chegou ao mosteiro em 2005. Ficou seis meses "conhecendo o lugar", até que no ano seguinte voltou para ficar em definitivo.
Em 2018, aos 34 anos, foi eleita pelas outras freiras para liderar a comunidade e tornou-se a abadessa mais jovem da Itália. Ela tinha chegado ao mais alto posto que uma mulher pode alcançar dentro do mosteiro, com a responsabilidade de liderança espiritual, moral e istrativa do local. A eleição, legítima dentro da hierarquia da Igreja, teria gerado desconforto no alto escalão da Ordem Cisterciense.
"O Lepori não gostou", lembrou, citando o que vê como perseguição do abade-chefe da ordem que dirige o mosteiro, frei Mauro Giuseppe Lepori.
Ele me disse que eu era muito jovem, que ia me 'queimar rápido'. Me disse que 'os jornais iriam me entrevistar só porque você é bonita e simpática', tentando me desacreditar desde já
Aline Pereira Ghammachi
Lepori é ligado ao movimento conservador Comunione e Liberazione e já esteve à frente de outros comissariamentos de mosteiros de sua congregação Cisterciense. Segundo Aline, o problema real não era sua aparência, mas seu estilo de gestão.
"Trouxe uma liderança baseada na escuta, na transparência. Isso incomodou", avalia. Para ela, seu perfil inovador, somado à independência da comunidade e às reformas financeiras que promoveu para salvar o mosteiro da falência, desencadearam a perseguição.
Prosecco e dúvidas sobre o cargo
Aline assumiu a liderança do mosteiro meses após ele ser aberto ao mundo. Isso porque, em 2017, ele ou de clausura papal - ou seja, totalmente fechado - para clausura constitucional - o que permite uma relação mais orgânica com o mundo exterior. Neste período, a comunidade começou a buscar alternativas para sobreviver economicamente.
Durante os anos seguintes, o mosteiro criou uma horta comunitária que era cuidada por pessoas com autismo, e intensificou o acolhimento de mulheres vítimas de violência. O grupo de freiras também viu na plantação de uvas uma chance de tirar as contas do mosteiro do vermelho, após sofrerem com uma crise financeira durante a pandemia de covid-19.
Em dezembro de 2022, lançaram um prosecco —um tipo de vinho espumante -, com rótulo do mosteiro. Um mês depois, chegou a primeira denúncia anônima ao Vaticano e, para Aline, não foi coincidência. "O abade criticou a exposição midiática, mas ser contra não torna algo ilegal", defende.
Além do vinho, Aline também introduziu produtos ligados à floresta amazônica, levando o Brasil ao centro da missão e criando pontes com o mundo exterior. Tudo isso, afirma ela, sem violar as normas da clausura.
Após dois anos e quatro meses, em 2024, o mosteiro ou por oito inspeções realizadas pelo Vaticano para investigar a jovem abadessa, acusada de manipular suas subordinadas e de incapacidade decisória. No entanto, nenhum relatório foi compartilhado com ela, que alega também não ter o ao direito de defesa. O comissariamento foi decidido pelo Dicastério da Vida Consagrada. O Vaticano, porém, não detalha essas decisões.
Diferentemente da informação divulgada pelo próprio Lepori, que afirmou em comunicado à imprensa que o mosteiro estava comissariado desde janeiro de 2023, o primeiro comissariamento ocorreu somente em janeiro de 2024. Na ocasião, o próprio frei foi nomeado como comissário. Posteriormente, ele foi retirado do cargo, levando Aline a acreditar que as denúncias tivessem sido arquivadas.
Meses depois, após nova visita apostólica conduzida por uma psicóloga, Aline, então debilitada por outras questões de saúde, ouviu que sua dor era "psicológica". "Chorei de dor, e ela [psicóloga] disse que eu chorava porque não queria mais ser abadessa", relatou. Para a freira, porém, esse episódio foi mais uma tentativa de invalidar sua liderança com argumentos pessoais, sem discutir as transformações concretas que promoveu no mosteiro.
Aline deixou o mosteiro após o afastamento em 21 de abril deste ano. No mesmo dia, quatro freiras fugiram do local alegando abusos sofridos pela nova abadessa. Algumas delas viviam no convento há mais de 25 anos, enquanto a mais nova tinha entrado apenas um ano antes.
Elas procuraram a polícia local para registrar que não haviam desaparecido, mas sim fugido de um ambiente insustentável. Elas deixaram o mosteiro com poucos pertences e buscaram abrigo temporário em associações da região. Dias depois, outras oito freiras também deixaram o mosteiro em solidariedade.
Recursos ao Vaticano e espera por solução
Agora, Aline vive em um limbo. Ela foi substituída por uma freira americana de 81 anos, de ideias conservadoras e próxima a Lepori. A brasileira diz que foi "convidada a sumir", isto é, ir para um mosteiro isolado, mas, além de não aceitar a proposta, entrou com recurso no Vaticano. "Eles querem me silenciar, mas não vão conseguir, querem que eu retire o recurso ao Vaticano, mas vou esperar até o fim por uma resposta, porque não se trata só de mim. Trata-se de abrir caminhos para outras religiosas que possam estar sofrendo caladas", disse à reportagem.
Eles dizem que manipulo as irmãs e a imprensa. Mas eu amo a Igreja. Minha vocação vem desde os 15 anos. Tenho 41. Não me calo por vaidade. É porque isso não pode mais acontecer
Aline Pereira Ghammachi
Enquanto espera um pronunciamento e decisão definitiva do Vaticano, Aline é apoiada pelas outras freiras que deixaram o mosteiro e também pediram para deixar a congregação. "A ideia é aderir a outra ordem, mas por causa do comissariamento, qualquer outra congregação pode hesitar em me acolher. Mas minha intenção é continuar como religiosa. Não estou pedindo dispensa dos votos.", disse Aline.
Por enquanto, elas estão acomodadas em uma casa de campo, cedida por uma pessoa que prefere manter anonimato. No local, onde há um vinhedo, as freiras pretendem continuar produzindo o prosecco que, para a ex-abadessa, tornou-se símbolo de resistência.
Ordem explica que freiras não aceitaram decisões
A Ordem Cisterciense publicou uma nota oficial no próprio site esclarecendo os fatos envolvendo o Mosteiro de São Tiago de Veglia, após a saída voluntária de algumas freiras. Segundo eles, o caso foi acompanhado de perto desde 2023, quando foram realizadas visitas extraordinárias devido a relatos de dificuldades na gestão e na convivência comunitária.
Posteriormente, o Vaticano determinou uma Visita Apostólica e, diante da persistência de alguns problemas, decidiu pelo comissariamento do mosteiro em abril de 2025 - medida apresentada como pastoral, não punitiva, mas necessária para auxiliar a comunidade.
A Ordem explicou que a comissária pontifícia, uma abadessa experiente, foi designada para guiar o mosteiro em diálogo com as monjas que aceitaram as decisões da Santa Sé. Já as religiosas que deixaram o local teriam feito essa escolha porque "não aceitaram o papel de vigilância e acompanhamento" que a Constituição Apostólica determina.
O comunicado ressalta que a Comissária segue "totalmente disponível para atender também as monjas que deixaram o Mosteiro". Além disso, reforça o compromisso para resolver a situação, seguindo as normas da Igreja e buscando o bem das monjas e da vida monástica.