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Polícia usa termo 'narcocultura' contra MC Poze; entenda o que está em jogo

do UOL

Maurício Businari

Colaboração para o UOL

31/05/2025 05h30

A Polícia Civil do Rio de Janeiro usou o termo "narcocultura" ao prender MC Poze; juristas e estudiosos afirmam que a expressão não tem validade penal e reforça a perseguição à cultura periférica.

O que aconteceu

MC Poze do Rodo foi preso temporariamente no dia 29 de maio, no Rio, acusado de apologia ao crime e associação para o tráfico. A Polícia Civil afirma que suas músicas e shows exaltariam a facção Comando Vermelho, numa suposta "narcocultura" que romantiza o tráfico. Pesquisadores ouvidos pelo UOL afirmam que o termo tem origem acadêmica, mas está sendo usado de forma ideológica para criminalizar artistas negros e periféricos.

A Polícia Civil publicou um post no Instagram chamando o artista de propagador da narcocultura. "Cantor de funk que propagava a narcocultura foi preso por apologia ao crime e por envolvimento com o Comando Vermelho", diz a publicação. A legenda ainda afirma que a prisão é "um recado para todos que ajudam a disseminar a narcocultura".

Rodou. Cantor de funk que propagava a narcocultura foi preso por apologia ao crime e por envolvimento com o Comando Vermelho. Conhecido por shows repletos de bandidos armados financiados pela organização criminosa, ele ajudava a espalhar a ideologia da facção. O cantor foi preso em casa, no Recreio dos Bandeirantes, em cumprimento a um mandado de prisão expedido pela Justiça a partir de investigação da Delegacia de Repressão a Entorpecentes. A captura é um recado para a facção criminosa e para todos aqueles que romantizam e ajudam a disseminar a narcocultura.
Polícia Civil do Rio de Janeiro

Juristas criticam o conteúdo por violar princípios constitucionais e antecipar a culpa do investigado. "O delegado deve manter sua neutralidade, sendo imparcial em relação aos fatos. O compromisso da investigação é com a verdade, não com a acusação", afirma o advogado criminalista Guilherme Gama. Para ele, a publicação da Polícia Civil viola o princípio da impessoalidade previsto no artigo 37 da Constituição.

Gama também alerta para o risco de contaminação da opinião pública. "Isso antecipa um juízo condenatório com viés político, sem permitir o contraditório e a ampla defesa". Segundo o jurista, a culpa só pode ser declarada após o trânsito em julgado.

Liberdade artística

O advogado criminalista Luiz Rutis afirma que a prisão é ilegal e viola a liberdade artística. "A prisão temporária só se justifica se o agente for perigoso". "Defender a narcocultura não exprime perigo". "Trata-se, em princípio, de uma atividade protegida pela liberdade artística".

Para ele, criminalizar músicas de funk com base em interpretação subjetiva de autoridade é censura indireta. "O critério sobre o que é permitido ou proibido deve ser sempre objetivo e claro". Em caso de dúvida, deve prevalecer uma presunção de legitimidade da manifestação cultural, explica.

Rutis vê flagrante violação ao princípio da proporcionalidade. "Sem elementos objetivos de periculosidade concreta, o uso da prisão como resposta à manifestação simbólica é um excesso arbitrário. Isso subverte a lógica do Estado de Direito", declara.

A socióloga Luciana Morgado diz que o termo 'narcocultura' já é usado em pesquisas, mas não pode ser banalizado. "Ele se refere a comportamentos de ostentação de riqueza por pessoas da periferia que ascendem por meio do tráfico". Porém, ela avisa que esse é um fenômeno estimulado pelo próprio sistema capitalista.

Segundo ela, há uma diferença clara entre relatar a realidade da favela e incitar o crime. "As músicas do MC Poze trazem o que ele vivenciou desde pequeno. Isso não pode ser confundido com apologia".

Repressão simbólica

Morgado afirma que artistas negros e periféricos são alvo preferencial da repressão simbólica. Ele se refere a outros gêneros musicais, como o sertanejo, o rock e o punk, que também falam de armas e violência e não sofrem o mesmo tipo de perseguição. "Isso revela seletividade e racismo estrutural", diz o especialista.

O antropólogo Vinícius Rodrigues alerta que o uso do termo pelo Estado é político, e não técnico. Ele explica que o termo pode ser uma ferramenta analítica, mas que está sendo usado como rótulo acusatório. Isso reforça a estigmatização do funk e da juventude negra, em sua opinião.

Para ele, retratar a desigualdade social em letras de música não é crime. "Como separar o que é fruto da imaginação do que é apologia? A aplicação da lei recai seletivamente sobre artistas periféricos".

Rodrigues também aponta censura velada como estratégia de controle. Para ele, usar MC Poze como exemplo é uma forma de impor medo a outros artistas. "Isso limita a liberdade de denúncia e expressão cultural das periferias", esclarece.

Juristas e estudiosos afirmam que o uso do termo 'narcocultura' por instituições do Estado não tem respaldo jurídico. "Prisão não é lugar de debate simbólico, e expressão artística não pode ser tratada como evidência de crime", resume Rutis.

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