Sobrou uma única casa na av. São João e ela retrata a história de São Paulo
De frente para o elevado João Goulart - conhecido como Minhocão -, pintada recentemente de cinza-escuro e com as duas janelas verticais de cor azul, a última casa que restou na avenida São João viu os imóveis vizinhos serem demolidos, e o seu entorno ser tomado por prédios e comércios ao longo dos anos. A modesta residência, que hoje funciona como hospedaria só para homens, é uma das poucas construções centenárias que sobreviveu à especulação imobiliária na avenida São João, principal via do centro de São Paulo.
Localizada no número 1767, com 210 m² de área, sendo 7 m de largura e 30 m de comprimento, a casa, hoje espremida entre prédios e comércios, não tem muro e ocupa um pequeno trecho dos 2,2 km da São João. Ao longo do século 20, a paisagem da avenida começou a se transformar, com casas sendo substituídas por edifícios. De prédio em prédio, a cidade de São Paulo foi ficando cada vez mais vertical. É nessa mesma via, por exemplo, que foi construído o Edifício Martinelli, o primeiro arranha-céu da América Latina, inaugurado em 1929.
Quem a pela frenética avenida, por onde circulam 38 mil veículos diariamente em ambos os sentidos, talvez nunca tenha notado que ainda há uma casa ali. O imóvel tem uma arquitetura simples e funcional para a época em que foi construída, no fim do século 19.
O responsável pela construção foi o imigrante italiano Savério Ferrara, que comprou o terreno em 14 de dezembro de 1897 e ergueu a casa, onde morou até os últimos dias de sua vida.
Com 20 e poucos anos, ele, dois irmãos e suas esposas deixaram o pequeno vilarejo de Montazzoli, localizado em Abruzos, na região central da Itália, hoje com cerca de mil habitantes, em busca de melhores condições em solo brasileiro. A mudança aconteceu no contexto da grande imigração italiana para o Brasil, entre os anos 1880 e 1930, como parte de uma iniciativa oficial do governo para substituir a mão de obra escrava. A crise econômica e social na Itália, com falta de emprego, motivou a vinda de milhões de italianos para trabalhar no Brasil.
Quando a casa foi construída, a avenida São João ainda era uma pequena rua, localizada no então distrito de Paz de Santa Efigênia. Foi lá, inicialmente no número 449, que a família Ferrara viveu por mais de cem anos após desembarcar de Montazzoli.
Savério ficou viúvo cedo. A esposa morreu em um acidente de trânsito a caminho de Aparecida, no interior de São Paulo. E ele precisou criar os quatro filhos sozinho naquele imóvel.
Nas primeiras décadas do século 20, não era raro encontrar a casa sempre cheia aos finais de semana. Primos, tios, filhos e sobrinhos se dividiam nas funções para organizar os encontros familiares no quintal, regado à tradicional gastronomia italiana. Macarronada com molho de tomate fresco e carne assada era o prato preferido, trazendo um pouco do distante aroma das noites em Montazzoli. A mesma receita ou por diferentes gerações da família e é servida até os dias de hoje.
Mesa farta e comida de qualidade preparada em casa eram prioridade para os italianos. Os encontros semanais eram como rituais de resistência contra o apagamento das tradições, entre elas o amor pelo baralho e pela culinária. Era o momento de transmitir aos mais jovens a cultura do vilarejo de onde vieram.
Além de presenciar a construção dos edifícios, a casa também viu o transporte público de São Paulo se modernizar Nos anos 1900, houve a implantação dos bondes elétricos, que avam por caminhos de vigas de ferro nas regiões mais movimentadas da cidade.
A aposentada Rita Ferrara, 83, neta de Savério, corria até a sacada para assistir o bonde ar. Ela também ficava irada com as corridas noturnas da São Silvestre e os desfiles de Carnaval. Da janela de casa, ainda menina, ela viu São Paulo se desenvolver.
Eu gostava muito de bicicleta, andava muito pela São João. Eu amava! Não era essa loucura de hoje. Quando era época de Carnaval, a gente ficava na janela vendo ar, a família toda junta. Meu avô colocava um banco na frente da casa, e sentava todo mundo na calçada, minha avó fazia bolo, e a gente comia na calçada. No Natal, a família se reunia, fazíamos uma bagunça.
Rita Ferrara
Paisagem da avenida São João se transformou
O imóvel assistiu quase que intacto, com diferentes pinturas na fachada, à paisagem urbana se transformar, sobretudo desde a construção do Minhocão, no início da década de 1970. O elevado, apesar de ter um papel relevante no trânsito da cidade, é considerado por especialistas um desastre urbanístico.
"Desde sua concepção, a proposta de um elevado, que faz parte da ligação leste-oeste, gerou muita polêmica. Idealizado na segunda metade da década de 1960 pelo prefeito Faria Lima, foi engavetado devido à reação negativa. Predominou a visão de que era uma obra que causaria um impacto extremamente negativo na paisagem urbana, e que alternativas viárias para a necessária ligação leste-oeste poderiam ser estudadas. Em 1969, quando o Ato Institucional nº 5 suprimiu as liberdades políticas, de expressão e de imprensa, Paulo Maluf decidiu iniciar a obra em ritmo acelerado", explica o arquiteto Nabil Bonduki em coluna publicada no UOL.
Inaugurado durante a gestão municipal de Paulo Maluf, em 1971, o Minhocão trouxe uma série de consequências para as residências e estabelecimentos da região, que se desvalorizaram.
Além da arquitetura mal planejada, o ruído e a poluição aram a afetar quem morava próximo ao elevado. A área ficou degradada e muitos moradores abandonaram os seus imóveis.
Ao lado da última casa da avenida São João, por exemplo, estava o famoso teatro das Nações, no número 1737. O local viu seu auge das décadas de 1960 e 1970 ser sucumbido pelo Minhocão e fechou as portas nos anos 1990. A construção foi demolida em 2010 para dar lugar a um edifício residencial.
Em 1993, Oswald Ferrara, filho de Savério, afirmou em entrevista à revista Veja que depois que o Minhocão chegou, todo mundo foi embora. Ele descreve como era a avenida antes da construção do elevado.
"A São João era cheia de árvores, arinhos e vizinhos amigos", disse o contador aposentado Oswaldo Ferrara, na época com 84 anos. "Depois que o Minhocão chegou, todo mundo foi embora, não coloco o nariz para fora da porta à noite. Como o elevado cobre a luz do sol, tudo ficou mais insalubre", acrescentou. A entrevista acompanha uma fotografia de Oswaldo na janela da casa, onde é possível ver o Minhocão ao fundo.
Dos quatro herdeiros de Savério, Oswaldo Ferrara foi o único que permaneceu na casa. Ele viu seus irmãos se casarem e irem embora, mas batia o pé e dizia que só sairia da casa quando morresse. E assim o fez. Quando adoeceu, ficou sob os cuidados de um profissional que ou a morar na casa. Em 2000, aos 94 anos, Oswaldo morreu.
"Meu avô não sairia de lá de jeito nenhum, ele nasceu ali e ficou lá por muito tempo. Ele dizia que não iria sair da casa", conta a psicanalista Silvia Ferrara, 63, neta de Oswaldo e filha de Rita. Ela lembra que, no fim dos anos 1990, a segurança já era motivo de preocupação para a família, mas seu avô fazia questão de manter a mesma rotina. "Era 11 horas da noite, ele saía para ear com o cachorro e deixava o portão aberto".
Memória e tradição preservada
Assim, a residência da família Ferrara tem sua importância histórica. A casa foi palco da construção de memórias da imigração italiana em São Paulo e é uma sobrevivente de tempos áureos da avenida São João.
Nos cômodos do imóvel, sendo quatro quartos, porão, quintal e na pequena cozinha, as gerações da família Ferrara foram crescendo e se moldando à nova São Paulo, mas sem esquecer das raízes.
"Viajamos para a Itália para conhecer um pouco da nossa origem, mas não conseguimos ir até o vilarejo de onde veio a família porque é uma região montanhosa, de difícil o. Mas um primo tem uma casa lá. Tenho vontade de conhecer", diz Silvia.
Ela afirma que, apesar de ninguém da família morar mais na casa, da avenida São João atualmente, a tradição dos encontros segue viva. "A gente continua reunindo os primos, com muita comida, principalmente no Natal e na Páscoa, claro que menos do que antes, mas a gente sempre tenta estar junto, a nossa italianada", conta.
Silvia é a última herdeira da casa. Hoje, ela é a responsável pelo imóvel, que está alugado desde meados de 2010. Sempre que a pelo número 1767 da avenida São João lembra da infância.
"Era uma cozinha pequena, devia ser alguma tradição da região de onde vieram. Porque se cozinhava tanto, mas era tão pequena. O banheiro era separado da privada e do local onde se toma banho. Eu lembro que eles jogavam muito baralho, a casa estava sempre cheia, o macarrão era cortado na guitarra [cortador de massa no formato do instrumento], lembro de chegarem às caixas de comidas da Itália e deles misturando português com italiano".
O futuro da última casa da São João é incerto
Embora a casinha reúna memórias da família Ferrara, Silvia pensa em vendê-la. Ela diz que nunca recebeu nenhuma oferta. Em 2010, quando todos saíram da casa e o imóvel ficou fechado, ela lembra que tinha medo de visitá-lo e culpa a falta de segurança na região.
"Ficou muito perigoso, e a casa é um pouco grande, tem muitos cômodos, não tem muro, eu tinha medo de ter alguém lá dentro", lamenta. Ela diz que, se o Minhocão não tivesse sido construído, moraria lá novamente. "Mas do jeito que está é o retrato da degradação da nossa cidade e do nosso patrimônio".
Desde 2010, a casa funciona como uma hospedaria para homens, como diz o anúncio colado em frente ao imóvel. O cartaz descreve que há opções de hospedagem diária, semanal, quinzenal e mensal.
Em 2024, o empreendimento foi interditado por irregularidades na documentação. Cerca de cinco meses depois, em janeiro deste ano, foi regularizado e reaberto. A frequência de hóspedes é baixa. Os vizinhos contam que quase não veem pessoas entrando e saindo do local.
Quem trabalha próximo ao imóvel, pouco sabe da história dele. "Sei que está aí há muito tempo, é bonita, mas não sei por que não foi destruída", diz um comerciante.
Sempre que a de carro pela avenida São João, Rita Ferrara não resiste a uma olhada para a casa onde nasceu. "Eu olho e penso assim 'oi, você está aí ainda?".