Vai construir na laje? Proposta de novo Código Civil muda quem seria dono

A proposta para o novo Código Civil, que deve tramitar em comissão especial no Congresso, reconhece que lajes são terrenos autônomos e abre a possibilidade de usucapião para quem constrói em cima da casa de outra pessoa.
O que aconteceu
Proposta para o novo Código Civil modifica o "direito real da laje". Pela legislação atual, a laje é uma "coisa alheia", ou seja, o proprietário de uma casa construída em uma laje não pode reivindicar o imóvel. O "direito real de laje" é entendido como "um direito de coisa alheia", e quem constrói uma residência nessa condição tem direito de usar a casa como se fosse sua, mas ela não é.
Pela proposta, a posse poderá ser transferida por venda e herança, além de usucapião. A ferramenta jurídica, que tem como base o uso e a função social da propriedade, garante que aqueles que mantêm a posse de um bem de forma pacífica, por longos períodos, possam reivindicar a sua titularidade legal.
Requisito é que o imóvel na laje tenha saída independente e identificação. Para que a construção na laje seja reconhecida como independente do imóvel-base, é preciso que ela tenha saída própria para a rua, identificação (por número e/ou letra) e condições de habitabilidade.
A unidade imobiliária sobre a qual recai a posse da laje deverá ter saída própria, direta ou indiretamente, para via pública e possuir designação numérica ou alfabética para fins de identificação.
Proposta de novo Código Civil
Mudança busca adequar a legislação à realidade das construções brasileiras, diz especialista. "A classe média, que já tem imóvel-base regularizado, será a mais beneficiada com a iniciativa", explica Davi Ory, advogado especialista em direito imobiliário pela UNB (Universidade de Brasília).
O direito real de laje existe desde 2017, mas as decisões judiciais apontam controvérsias. Alguns juízes são favoráveis às reivindicações de posse das lajes, mas a maioria entende que não é possível reaver essas posses, já que a legislação atual não prevê usucapião.
Casas construídas em lajes são objetos de disputa
É o caso de Bruno, que construiu no terreno que pertenceu à mãe. O motoboy viveu por cinco anos com a então companheira em uma casa que construiu aos 17 anos, sobre a laje do irmão, no terreno herdado da família na zona norte de São Paulo. Hoje, quase dez anos após a separação, ele teme perder o imóvel para a ex-mulher, que continua vivendo no local com as duas filhas.
O terreno pertenceu aos avós de Bruno e foi dividido entre a mãe e os tios. Depois da morte da mãe, três irmãos reorganizaram a posse: uma casa ficou com a irmã, outra foi construída nos fundos pelo irmão, e Bruno ergueu uma terceira moradia no andar superior, quando soube que seria pai.
A lei já permitia que imóveis construídos em um mesmo terreno pudessem ter autonomia. Os irmãos de Bruno tiveram facilidades para a regularização dos dois imóveis construídos no terreno da mãe, mas a casa de Bruno, teoricamente, pertenceria ao seu irmão, já que foi construída na laje da sua residência. Se a mudança no código for aprovada, o imóvel pode ter outro proprietário.
Bruno afirma que cedeu a posse temporariamente, mas a mudança no Código Civil pode beneficiar a mãe das suas filhas. "Cedi porque tenho duas filhas naquela casa", explica. Atualmente, ele vive em outro imóvel em Osasco, também próprio, mas diz que deseja voltar. "Toda a minha família está lá. Já tentei oferecer outros lugares, mas ela quer um apartamento que eu não tenho condições de comprar no momento."
Com as mudanças em discussão no Código Civil, a ex-companheira de Bruno pode tentar reivindicar o imóvel por usucapião. Ela vive no local há mais de cinco anos com as filhas, o que pode facilitar a comprovação de vínculo com a moradia e de dependência econômica. "Hoje ela fala que a casa é dela, mas eu falo que a casa é minha e fica por isso mesmo, pelas minhas filhas", diz o motoboy.
Os tribunais foram consolidando o entendimento de que é possível fazer usucapião de imóveis construídos em lajes privadas, mas não é consenso. Ainda assim, as decisões devem ar pela questão da regularização do imóvel-base, o que pode dificultar que a mudança no código civil tenha o alcance desejado pelo legislador, já que uma parcela significativa das construções brasileiras está sem regularização.
Davi Ory, advogado especialista em direito imobiliário pela Universidade de Brasília
Código atual vale desde 2002
Lei contém regras sobre casamento, herança, entre outros. Enquanto a Constituição reúne as normas que regem o funcionamento do país, o Código Civil foca em direitos e deveres do cidadão. Ele é organizado em 5 partes: diretrizes gerais, obrigações, direito de família, direito das coisas e direito das sucessões.
Proposta de reforma do Código Civil foi elaborada por comissão de 38 juristas. O colegiado contou com a participação dos ministros do STJ (Superior Tribunal de Justiça) João Otávio de Noronha, Isabel Gallotti, Marco Buzzi e Marco Aurélio Bellizze, além do ministro aposentado Cesar Asfor Rocha.
Comissão para analisar o texto foi criada por Rodrigo Pacheco (PSD-MG) quando ainda era presidente do Senado. A presidência da comissão ficou a cargo do ministro Luís Felipe Salomão, vice-presidente do STJ, e o próprio Pacheco protocolou a proposta no Senado. Procurado, ele não retornou os contatos da reportagem.
Juristas propam a alteração de 1.122 dos 2.046 artigos da lei. "Uma mudança que afeta mais da metade dos artigos e todos os capítulos do código é uma reforma e não uma atualização", afirma Caio Fink, sócio do Machado Associados. Para ele, o texto é vago em relação a pontos que exigiam maior precisão e cria novidades de difícil aplicação.
"Guarda compartilhada" de animais de estimação em caso de separação é uma das inovações propostas. O projeto prevê que ex-cônjuges têm "direito de compartilhar" companhia e custos ligados a pets. O texto incorpora um entendimento já aceito pelo Tribunal de Justiça de São Paulo e outras instâncias.
Protocolada em janeiro, proposta deve tramitar em comissão especial. Contudo, o UOL apurou que não há prazo para o colegiado ser criado e instalado. O projeto deve ar por audiências públicas e comissões antes de ir à votação no plenário.