Comissão reabre buscas por mortos da ditadura no Rio após 14 anos
Após 14 anos, as buscas por desaparecidos políticos e a tentativa de identificação de mortos pela ditadura foram retomadas no Rio pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.
O governo federal reiniciou os trabalhos no cemitério de Ricardo de Albuquerque, zona norte da cidade, onde 2.100 pessoas foram enterradas como indigentes no regime militar.
Entre 1970 e 1974, os corpos sinalizados como indigentes foram enterrados nas covas rasas das quadras 16, 17 e, principalmente, 23, segundo investigações.
Depois, os corpos foram levados para um ossário geral no cemitério. No início da década de 1980, esses restos mortais foram realocados e misturados em uma vala clandestina próxima da quadra 23.
Sobre essa vala, foi construída uma laje de concreto magro e, mais acima, gavetas para abrigo de novos corpos sepultados no Ricardo de Albuquerque.
Na década de 1990, foi feita uma força-tarefa com familiares de vítimas, integrantes do governo e antropólogos forenses argentinos que haviam trabalhado em investigações sobre crimes da ditadura daquele país.
Na época, peritos descobriram que 14 pessoas foram sepultadas clandestinamente no cemitério de Ricardo de Albuquerque, mas não foi possível identificar individualmente os mortos.
Entre 2012 e 2014, no governo Dilma, a CNV (Comissão Nacional da Verdade) descobriu o 15º corpo, do estudante Joel Vasconcelos Campos —que tinha 21 anos anos quando morreu. Depois, o 16º, do camponês Félix Escobar Sobrinho —48 anos—, identificado nas pesquisas da CNV.
Os peritos cruzaram arquivos do cemitério, do IML (Instituto Médico Legal) e do Instituto de Criminalística Carlos Éboli —onde parte das perícias das vítimas da ditadura era feita.
Os materiais ósseos foram guardados em um memorial construído sobre onde, ainda hoje, existe uma vala clandestina da ditadura.
Na manhã do dia 21 de maio, a comissão abriu o cadeado do memorial e voltou a trabalhar sobre os materiais ósseos guardados desde 2011.
O UOL acompanhou os trabalhos dos peritos no local.
O trabalho dos peritos
Livros dos óbitos registrados no período foram analisados. Especialistas observaram caso a caso, entendendo padrões dos corpos identificados na década de 1990 e das vítimas localizadas nos anos 2010.
Ana Carolina Antão, uma das três responsáveis pela pesquisa documental, explicou em audiência pública realizada na quinta-feira (22) que o trabalho inicialmente foi feito a partir da primeira listagem dos 14 nomes.
Esse trabalho chegou, por exemplo, até a descoberta de que Félix era o 16º corpo identificado como sepultado no Ricardo de Albuquerque.
Após a documentação do sepultamento não ter sido encontrada, uma comparação foi feita a partir de registros de pessoas sepultadas sem nome, com características de informações transcritas parecidas com as das demais já identificadas.
Buscas após 14 anos
Protegidos com EPIs (equipamentos de proteção individual), peritos entravam e saíam de dentro do memorial com materiais ósseos entre a manhã e a tarde do dia 21.
Samuel Ferreira, perito médico legista e geneticista forense, explicou que, ao entrar no local, ficou surpreso, pois parte dos materiais que haviam sido armazenados estava remexido.
Partes de ossos estavam no chão, com algumas partes quebradas e em um ambiente úmido, o que indica que, apesar de guardados desde 2011, não foi a primeira vez que alguém teve contato com o material em 14 anos.
Na segunda metade do memorial havia cerca de 20 sacos pretos, sendo dois deles abertos, mas os peritos decidiram não mexer naqueles itens por enquanto.
"Por dignidade e respeito, recolhemos o que estava no chão e separamos em cinco caixas, que agora estão organizadas dentro daquele memorial", disse.
Em meio a isso, os materiais genéticos foram recolhidos.
A procuradora da República Eugenia Augusta Gonzaga, presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, estava à frente do trabalho no local.
Segundo ela, o material não representa nem 20% do total dos remanescentes ósseos da vala clandestina do Ricardo de Albuquerque. Embaixo do memorial ainda existe a vala clandestina, com os demais ossos enterrados naquele período.
"Nessa vala havia milhares de ossos, só que não estavam como em Perus [zona noroeste de São Paulo], ensacados individualmente. Eles estavam todos misturados. O memorial armazenou parte desses remanescentes", disse à reportagem.
Eugenia afirmou que a expectativa é identificar os 16 corpos já associados ao local. "Agora, é possível que tenha outros desaparecidos políticos, que foram enterrados clandestinamente, sem nenhuma anotação em nenhum livro."
O Brasil fez a transição da ditadura para a democracia sem fazer o dever de casa, sem revelar a origem dos corpos, sem abrir arquivos. Então, estamos tentando resgatar essa história e promover esse tipo de reparação para as famílias.
Eugenia Augusta Gonzaga, procuradora da República
Possíveis últimos
Na noite de 27 de outubro de 1973, os militantes Almir Custódio de Lima, 22, Ramires Maranhão do Valle, 22, Ranúsia Alves Rodrigues, 27, e Vitorino Alves Moitinho, 24, foram executados na praça da Sentinela, em Jacarepaguá, zona oeste do Rio.
Todos faziam parte do PCBR (Partido Comunista Brasileiro Revolucionário).
A ação foi comandada por agentes do DOI-Codi, do Exército. Entre oito e nove Opalas encurralaram o Fusca onde os quatro estavam, segundo jornais da época.
Os militares metralharam e atearam fogo no carro. Os três homens morreram carbonizados. Ranúsia foi vista por testemunhas do lado de fora do carro, com quatro tiros no peito.
Somente em 17 de novembro de 1973 os militares divulgaram o caso. Afirmaram que houve um tiroteio e, por causa dos disparos, o Fusca explodiu.
As vítimas foram enterradas como indigentes no Ricardo de Albuquerque só no mês seguinte. Elas são 4 das 16 identificadas na vala clandestina do cemitério.
O engenheiro aposentado Romildo Maranhão do Valle é irmão mais velho de Ramires, uma das vítimas carbonizadas. Ele também acompanhou o trabalho da perícia no cemitério.
Ele contou ao UOL que o irmão integrou a resistência armada à ditadura e lembrou que o ataque foi o último sofrido pelo PCBR. Àquela altura, os demais integrantes ou estavam presos ou exilados.
"Foram os últimos militantes políticos sepultados aqui. Porque, em 1974, a Santa Casa de Misericórdia, que tinha o controle istrativo, ou a sepultar os indigentes, sem identidade, em outro cemitério", disse Romildo.
A ditadura militar fez um rodízio entre os locais de sepultamentos de "indigentes".
No Rio, além do Ricardo de Albuquerque, os cemitérios da Cacuia, na Ilha do Governador, e de Santa Cruz, na zona oeste, também foram usados.
Familiares ainda estão aqui
Rafael Maul, diretor do grupo Tortura Nunca Mais-RJ, que acompanha os familiares dos desaparecidos e mortos por agentes da ditadura, disse que a retomada das buscas é importante para reforçar a memória do que acometeu o país.
"O desaparecimento forçado faz parte da história do Brasil. O processo da escravidão é um exemplo. É importante dizer que cidadãos brasileiros, dos seus mais diversos caminhos, condições sociais e raciais, foram desaparecidos ao longo da nossa história", disse.
A advogada Altair Vasconcelos, irmã de Joel Vasconcelos Santos, o 15º corpo indicado como sepultado no memorial do cemitério, também acompanhou o trabalho de perícia feito no Ricardo de Albuquerque.
"Houve, sim, uma ditadura no Brasil. Meu irmão é um desaparecido político ainda hoje, embora a responsabilidade do Estado pela sua morte e pelas torturas que sofreu já tenha reconhecimento pelo próprio Estado brasileiro."
Segundo ela, relembrar aquele período é importante para que ele não retorne: "Ainda estamos aqui, sim. Estivemos aqui muito antes do filme".
No fim dos trabalhos dos peritos, placas com os nomes das vítimas foram colocadas em pilastras ao lado do memorial. Foi a primeira vez que o nome de Joel foi exposto no cemitério onde está.