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Pouco antes de morrer, Sebastião Salgado falou sobre futuro da fotografia na era da Inteligência Artificial

27/05/2025 12h35

Em sua última entrevista concedida à RFI na Normandia, no norte da França, em março deste ano, o icônico fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado compartilhou reflexões profundas sobre sua trajetória, a essência da fotografia e o papel da inteligência artificial na arte. A conversa aconteceu em meio à retrospectiva Sebastião Salgado: Obras da Coleção da MEP, que segue em cartaz no centro cultural Les Franciscaines até 1° de junho de 2025.

Em sua última entrevista concedida à RFI na Normandia, no norte da França, em março deste ano, o icônico fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado compartilhou reflexões profundas sobre sua trajetória, a essência da fotografia e o papel da inteligência artificial na arte. A conversa aconteceu em meio à retrospectiva Sebastião Salgado: Obras da Coleção da MEP, que segue em cartaz no centro cultural Les Franciscaines até 1° de junho de 2025.

Muito emocionado na abertura da coletiva de imprensa de apresentação da mostra, Sebastião Salgado lembrou da doença que contraiu e que, dois meses e meio mais tarde, acabaria por matá-lo. "Fui internado na semana ada num hospital em São Paulo para continuar um tratamento e volto na semana que vem para lá. É uma doença bem forte que eu adquiri há cerca de 15 anos trabalhando no projeto 'Gênesis', na Nova Guiné. Eu peguei malária e os médicos em Paris, no [tradicional hospital] Salpêtrière, me disseram que eu deveria descansar durante seis meses, porque a doença ataca o corpo inteiro, mas eu tive que desligar porque já estava no platô do Colorado", contou Salgado, ao apresentar a retrospectiva em francês.

"Eu não pude interromper a excursão fotográfica, mas quando voltei a Paris, minha defesa imunológica despencou e eu desenvolvi uma infecção generalizada, tomando doses cavalares de antibiótico. Minha máquina de produzir glóbulos brancos e vermelhos se danificou para sempre. É uma espécie de câncer que adquiri, sou tratado por oncologistas", revelou.

"Tomo medicamentos há 15 anos e isso ajuda um pouco, fiz toda a série na Amazônia assim, mas há duas semanas meu corpo começou a rejeitar o remédio e eu tive uma hemorragia no baço. Me desculpem, eu não estou nem com 50% da minha energia", disse Salgado, em meio a aplausos da plateia. 

O privilégio "enorme" de "estar vivo"

Sebastião Salgado chegou a chorar ao lembrar de seus périplos pelo planeta, na abertura do evento, e ao celebrar colegas mortos durante sua trajetória. "O dia mais feliz da minha vida foi quando completei 80 anos... Simplesmente porque eu estava aqui. Eu não estava morto. Quantos amigos perdi, éramos todos amigos durante quatro anos em Goma [,na República Democrática do Congo], quatro fotógrafos foram assassinados, eu estava lá. Então para mim, estar vivo com 80 anos, é um privilégio enorme", confessou.

Você só fotografa com a sua herança, com tudo que está dentro de você...

"Os céus dramáticos de Minas Gerais"

Salgado, conhecido por suas imagens que capturam com intensidade a humanidade e a natureza, falou à RFI sobre a influência das suas raízes em Minas Gerais nas suas obras. "Se você colocar 300 fotógrafos em um evento, você vai ter 300 fotografias diferentes, porque você só fotografa com a sua herança, com tudo que está dentro de você", explicou.

Durante a entrevista exclusiva, ele destacou especialmente os céus que marcaram sua infância: "As minhas fotografias têm séries, céus dramáticos, carregados. Isso vem de onde eu nasci, vem da chegada da época de chuva naquelas montanhas de Minas Gerais que meu pai me levava para ver... no pico mais alto da nossa fazenda, pra se chegar àquelas nuvens incríveis, para ver o raio de sol ar através dessas nuvens, ver a chuva. Então aquelas imagens ficaram em mim".

"Fotografia é memória"

Sobre a função da fotografia, Salgado foi enfático ao lembrar seu papel social e documental. "Cada vez que você aperta no botãozinho da câmera e faz uma imagem, você faz um corte representativo do planeta naquele momento, e você só o faz naquele momento. Precisa ter a realidade em frente para essa imagem existir, para ela ser vista como fotografia, senão ela vai ser vista como um objeto criado como um artistismo, mas não como fotografia. Fotografia é a memória da sociedade", afirmou.

O fotógrafo reforçou que a memória é indissociável da realidade registrada pela fotografia. "Fotografia é a memória, e a memória tem que existir. E a memória só pode ser feita através da realidade. Uma ficção não pode criar memória, então eu acho que a fotografia jamais perderá sua função", disse, destacando que seu compromisso sempre foi com a verdade documental da imagem.

Inteligência artificial X imagens

Quanto ao impacto da inteligência artificial na arte visual, Salgado mostrou-se aberto ao avanço tecnológico, mas cético sobre o futuro da fotografia enquanto memória. "Eu não estou querendo tirar o lugar da inteligência artificial. Eu acho que ela vai fazer coisas fantásticas, talvez até melhor do que a gente. Com a nossa inteligência normal o que nós fizemos foi destruir o planeta, fizemos guerra, fizemos violência. Talvez uma inteligência artificial seja realmente inteligente para levar a gente em outra direção", ponderou.

No entanto, deixou claro que a fotografia autêntica, para ele, não pode ser substituída. "Eu não sou contra a inteligência artificial, mas fotografia mesmo, só é fotografia. Quando você pega a fotografia que você faz no telefone celular, isso não é fotografia. Isso é uma linguagem de comunicação por imagem, mas que não tem nada a ver com a memória", ressaltou.

Para Salgado, "a inteligência artificial não vai mudar nada na fotografia, porque só pode criar a partir do que já existe. Pode imaginar, transformar, mas a fotografia é outra coisa, não são as imagens que você faz com o celular, isso é uma linguagem de comunicação por imagem, mas que não tem nada a ver com a memória", disse. "Eu fico com pena dos bebezinhos de hoje que os pais fotografam com isso [smartphones], mandam as imagens para uns e outros, mas a memória não permanece. O dia em que ele perder o telefone, que ele mudar o sistema, uma parte das imagens vai desaparecer, isso não interessa mais. Mas aquela ideia de memória, é só a fotografia que traz", sublinhou.  

Testemunha ocular das revoluções do planeta

"Eu estudei geopolítica, antropologia, vi que nós estávamos chegando ao fim da primeira grande revolução industrial e que as máquinas inteligentes estavam substituindo o proletariado em toda linha de produção, que os robôs estavam substituindo o homem", declarou em entrevista à RFI em Deauville. "Eu resolvi fazer um retrato da classe trabalhadora antes que ela desaparecesse, e fiz. Minha formação [em economia com ênfase social] me permitiu ver o momento histórico que eu estava vivendo e fotografando", sublinhou.

Não que eu seja um militante, não que eu quis fazer coisas diferentes dos outros, mas o que eu fiz, eu fiz com uma certa coerência política.

"Mas eu pude ver que uma outra maior revolução estava acontecendo. Que o fato da gente estar terminando um tipo de indústria nessa parte sofisticada do planeta, não significava que ela estava acabando, mas se transferindo para a China, para o Brasil, a Indonésia, o México, esses grandes países em território e população. Trabalho barato, mão de obra barata", atestou Salgado.

"Eu fui atrás dessa reorganização da família humana que estava acontecendo no mundo. Durante seis anos eu fotografei o que se transformou no livro "Êxodos". "Então essa minha herança visual, histórica, essa minha formação que permitiu me situar. Não que eu seja um militante, não que eu quis fazer coisas diferentes dos outros, mas o que eu fiz, eu fiz com uma certa coerência política", definiu Salgado à RFI.

O respeito pelas criaturas do planeta

"Antes eu acreditava em uma só espécie: a minha. Mas me decepcionei ao descobrir que somos atrozes, violentos, horríveis, que estamos nos destruindo e a nosso planeta. Descobri também que faço parte de um universo enorme de espécies, e que se a minha desaparecer, não há problema", disse ainda Salgado.

"Não sou um ser que domina o que está em volta, eu sou parte de tudo isso, dos minerais, dos vegetais", diz, quando perguntado sobre o que aprendeu ao realizar a série "Gênesis", que ele afirma ter "reacendido sua esperança na vida e no planeta".

"Todos os minerais têm uma inteligência inacreditável, assim como os vegetais. Uma vez fotografei uma árvore na Serra Nevada, nos Estados Unidos. Ela tinha sido parcialmente queimada, e cientistas que me acompanhavam me disseram que ela havia sido tocada pelo fogo de um determinado lado há mais de 1.500 anos. Incrível. Para ficar frente a um ser como esse é necessário muito respeito, e tempo para compreendê-lo, e para que ele possa compreender você também. Para que possamos fotografar a dignidade presente nesta árvore", argumentou um Sebastião Salgado visivelmente emocionado.

O legado

Sebastião Salgado faleceu em 23 de maio de 2025, aos 81 anos, em Paris, devido a uma leucemia grave, complicação de uma malária contraída em 2010 durante uma expedição fotográfica na Indonésia. Sua morte foi divulgada pela Academia sa de Belas Artes, da qual o brasileiro fazia parte desde 2017, e confirmada pelo Instituto Terra, organização ambiental fundada por ele e sua esposa, Lélia Wanick Salgado. 

Salgado deixa um legado único em imagens de suas centenas de viagens pela floresta amazônica e também por diversas regiões do planeta ? de Ruanda à Indonésia, da Guatemala a Bangladesh ? capturando com sua lente tragédias humanas como a fome, as guerras e os êxodos massivos.

Ele via a fotografia como "uma linguagem poderosa para tentar estabelecer relações melhores entre os homens e a natureza", lembra a Academia de Belas Artes da França em sua biografia.

Salgado trabalhava quase exclusivamente em preto e branco, linguagem que considerava ao mesmo tempo uma interpretação da realidade e uma forma de traduzir a dignidade irreprimível da humanidade.

Nascido em 8 de fevereiro de 1944 em Aimorés, no estado de Minas Gerais, Brasil, era economista de formação. Exilou-se na França em 1969 para fugir da ditadura militar, ao lado de sua futura esposa, Lélia Wanick, com quem teve dois filhos.

Começou sua carreira como fotógrafo profissional de forma autodidata em 1973, em Paris, ando pelas agências Sygma, Gamma e Magnum até 1994. Naquele ano, fundou com Lélia a agência Amazonas Images, exclusivamente dedicada ao seu trabalho, e que acabou se tornando seu estúdio.

A retrospectiva em Deauville é uma oportunidade rara para apreciar a obra de um dos maiores fotógrafos do mundo, cuja arte continua a emocionar e provocar reflexões sobre o nosso tempo e o planeta.

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